sexta-feira, 3 de maio de 2013

boa noite

A noite já ia alta. Gustavo se aproximou do muro ao ouvir os passos. Marina andava rapidamente, os saltos estalando contra o chão, os cabelos longos e negros deixando a noite fria com um cheiro adocicado. 
- Guga! – ela chamou, apertando a bolsa contra o corpo, olhando em volta, assustada. Não gostava de ir ali nem de dia. Maldito Guga. 
Foi pensar nele para vê-lo. Ele a espiava por cima do muro, apenas os olhos insondáveis e o cabelo castanho visíveis. 
- Vem. – foi tudo o que ele disse, se afastando do muro para abrir o portão. 
- Eu mudei de ideia. – ela falou, dando um passo para frente. Ele a olhou, levantando a sobrancelha. – Não vou fazer isso. 
- É só uma brincadeira. Só se você tiver muito azar. – ele disse, segurando as mãos da garota. – Vamos, eu preciso de você. Podemos jurar sobre a arma. Você trouxe a arma, né? – Marina botou a mão no bolso e puxou a Magnum .44. Gustavo a pegou de sua mão, sorrindo avidamente. 
- Tudo bem. – murmurou Marina, entrando definitivamente no cemitério. Gustavo alargou o sorriso e beijou os lábios da garota. 
- É por isso que eu amo você. – ele fechou o portão e os dois andaram até um canto mais afastado, onde se sentaram em pedras brancas que refletiam o brilho da lua. 
Sorrindo, Gustavo encostou o revólver na lateral da cabeça. 
- Se eu morrer – ele disse, solenemente – vai significar que eu não amo você. Se eu não morrer, meu amor será provado. – sem desmanchar o sorriso infantil, ele puxou o gatilho. 
A explosão fez diversos pássaros alçarem voo  Marina olhou o corpo do garoto até ele bater no chão. Seu sorriso parecia zombar da sua própria estupidez. 
- Acho que você não gostava tanto assim de mim. – murmurou ela. O assassinato perfeito. Havia posto todas as balas no maldito revólver. Garoto burro, nem isso havia checado. 
O revólver era de seu pai. Sua história era perfeita. Havia vindo até o maldito cemitério e terminou com o garoto. Havia levado a arma, sim, mas não percebera que ele havia tirado-a de seu bolso. Voltara então para casa e no dia seguinte receberia a notícia chocante: o namorado se suicidara. Garoto idiota. Namorado infiel. 
- Boa noite, filho da puta – sussurrou ela, se levantando e sumindo dali.

28/12/12

seus olhos

Eu gostava dos seus olhos. 
Não eram o estereótipo de “olhos bonitos”. Eram de um castanho comum, cor de madeira, alguns pontos um pouco mais escuros que o resto. Eram olhos pequenos, porém largos, expressivos, protegidos por sobrancelhas grossas. Tinha cílios curtos, negros, nada chamativos. Eram olhos normais, que você espera encontrar na maior parte das pessoas. 
 Mas eram olhos cuidadosos, olhos que sempre estavam em mim, vigiando meus passos, prontos para me estenderem a mão para ajudar. Olhos de quem se importava. Olhos de quem me amava. 
Olhos comuns de gente especial.

02/02/13

domingo, 28 de abril de 2013

pêndulo

Casas abandonadas a fascinavam. Fazia muitos anos que, sorrateiramente, invadia alguma durante a noite e fotografava cômodo por cômodo. Ia sempre sozinha, nunca tivera medo. Não era diferente naquela noite. Levava uma mochila nas costas, a câmera guardada dentro dela. Andava devagar, absorvendo os detalhes, se controlando para não tocar nos alto-relevo. 
Havia um grande relógio, encostado na parede. Estava quebrado e parecia muito mais antigo que o resto da casa. A moça não se controlou e tocou nele. Uma quantidade absurda de pó sujou sua mão. Limpou-a distraidamente na camiseta. O pêndulo do relógio se encontrava caído, e as mãos já não apontavam a hora certa. 
Puxou um casaco da mochila e o vestiu, voltando a andar. A noite esfriava rapidamente. Ela não se importava com o frio. Parou no que achou ser a sala de jantar da casa e pegou a câmera, começando a fotografar os cômodos. A casa estava mais quieta do que nunca. Nem a madeira rangia mais. 
O relógio bateu a meia noite.

30/12/12

imensidão

Vou para a praia todos os anos. Não por ser fã da multidão ou da areia ou o sol escaldante. Mas o mar me fascina. Sempre me fascinou. 
Não hesito na hora de entrar na água fria. Agradeço por ela. Ando tranquilamente até a arrebentação, esperando a próxima onda. Então me viro para a areia, e abro os braços, como uma figura de proa. E então a onda vem, e eu pulo e me ergo, e naquele único segundo eu fico acima de todos e vejo a todos e tudo. 
Repito isso várias vezes ao longo do dia, até meu corpo cansar, mas a sensação não desaparece. O mar me pertence. E no segundo em que fico acima do mundo, tudo me pertence, tudo sou eu. 
E eu sou tudo.

19/02/2013

sábado, 27 de abril de 2013

inocência

Olho nos olhos de um cachorro na rua e subitamente vejo à mim mesmo. Me vejo bebê, com grandes olhos redondos, cheios de uma pureza sem igual. Me vejo criança, sapeca, os olhos sorrindo com naturalidade. Me vejo feliz, brincando, correndo. Me vejo triste, esperando minha mãe voltar para casa. 
Olho para o rosto do cão. Molhado, sujo, machucado. Falhas nos pelos. Me abaixo e estendo minha mão. Ele vem para mim, pede carinho, abana o rabo. Toco sua cabeça de leve. Pelos molhados e sujos se grudam aos meus dedos. Ele levanta os olhos para mim, e me vejo novamente nos seus olhos. 
Vejo a mim, sozinho, esperando por alguém que nunca vai chegar. Vejo a mim, com fome, catando comida por lugares abandonados. Vejo a mim, machucado, sem ninguém para me cuidar. Vejo a mim, molhado, sem nada para me secar. 
Me ajoelho e abraço o cão. Ele se deixa abraçar, se aconchega, dá uma lambida na minha orelha. Choro. Juro nunca mais abandoná-lo. 
Sei que ele nunca me abandonará.

27/04/13