domingo, 5 de junho de 2011

três atos

Tive uma vida boa. Fui rico, sabe. As coisas sempre eram boas, fáceis para mim. Entre eu ter um sonho e ele se realizar era questão de minutos. Tive várias amantes, todas lindas, jovens e ingênuas. Me desfiz de todas quando não me satisfaziam mais, ou quando me apaixonava por outra. Deixei para trás apenas dois filhos, um casal de gêmeos, cuja mãe foi a que mais amei. Nenhuma beleza superava a sua. Mas isso já mais não importava. Não conseguia me lembrar de seu rosto. Tudo se perdia na minha memória agora.
No fim, ela também foi embora. As crianças ficaram comigo, mas foram criadas praticamente pelos empregados. Conviviamos apenas nas refeições, quando eu fazia questão de ficarmos juntos. Não fui um bom pai, obviamente. Mas na época não importava. Era escravo da ganância.
Os anos passaram, rápidos como um piscar de olhos. Os gêmeos cresceram. Não falei seus nomes ainda. Eram Carlos e Lucía. Haviam puxado a beleza da mãe e cheiravam a canela assim como ela. As peles eram lisas e suaves, não pareciam mudar ao longo dos anos. Mesmo na adolescência ainda pareciam ser de pêssego.
Mas minha hora estava chegando. Não ia me safar. Na minha mente, eu não fui uma pessoa ruim. Não roubei, não matei. Mas não fui uma pessoa boa. Tinha o temperamento forte, entende. Meus filhos, tenho vergonha de chama-los assim, não fui um pai para eles, nunca viram esse meu lado. Mas sabiam dele. Toda a bondade que conheceram foi através dos empregados. Nem a mãe chegaram um dia a ver por mais que alguns minutos.
A ideia foi de Lucía, é claro. Tinha o meu temperamento. Muitas vezes eu ouvia-a gritar pela casa, irritada com os empregados ou até mesmo com Carlos. Raramente me dirigia a palavra, apenas pequenos olhares mal-humorados. Eu mal a percebia, outro grande defeito como pai. Isso me levou a morte.
Doce morte. Teve gosto de chocolate. Foi algo inteligente a se fazer. Uma dose excessiva de um remédio que eu tomava há tempos. Nada demais. Mas ela não ficou satisfeita. Precisava fazer algo com as próprias mãos, não através de truques. Não importava o que aconteceria depois.
Eu estava agonizando quando ela se ergueu e puxou uma faca da manga. Não notei no primeiro instante. Eu não conseguia me focar em nada. Carlos não se mexia. Apertava a borda da mesa apenas, como que para sentir algo sólido. Então senti a lâmina entrar no meu corpo, uma vez, três vezes, por fim cinco vezes. O cheiro do sangue me enojou. Algo parecido com ferrugem e sal.
Eu ficava cada vez menos consciente da dor. Na verdade, ficava cada vez menos consciente de tudo. Mas eu precisava, eu tinha que olhá-la uma última vez. Mas não havia imagens, nem sons. Eu sentia o gosto do chocolate na minha garganta. Os rasgos no meu peito. Até mesmo o cheiro de sangue continuava presente. Tentei falar, mas não tinha voz.
Tudo estava desaparecendo.

1/2/11

Um comentário:

Bruno Antonelli disse...

Sobre esse post e o acima:

Macabros.

...

Continue assim. :D